quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Prestemos atenção ao que estamos fazendo com a nossa sociedade. Que modelo estamos reproduzindo?

PARA REFLEXÃO!
 
As duas mortes do Toni
Por João Negrão, especial para o Maria Frô
26/09/2011


Quarta-feira, 21 de setembro de 2011, 19 horas, em Jackson, capital do estado da Geórgia, Estados Unidos, Troy Davis, um negro de 42 anos, recebeu a dose letal que o levaria à morte. Condenado por assassinato, Troy Davis deitou-se na maca para receber as injeções repetindo a mesma frase de 22 anos antes, quando foi preso e condenado: “Sou inocente”. Quinta-feira, 22 de setembro de 2011, por volta das 23 horas, em Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso, Brasil, Tony Bernardo da Silva, um negro de 27 anos, africano de Guiné-Bissau, estudante de Economia da Universidade Federal, recebeu um pontapé na traquéia e morreu. O golpe culmina uma sessão de socos e pontapés desferidos por dois policiais e um empresário que duraria em torno de 15 minutos.

Impossível não traçar um paralelo entre as duas mortes.
A primeira foi uma condenação legal, nos moldes da justiça norte-americana, que todos conhecemos, empenhada a condenar negros, ainda que, como é o caso de Troy, haja evidências de inocência. Inclusive depoimento de outro preso assumindo a autoria do crime atribuído a ele. Em vão: Troy não recebeu perdão, não teve a clemência do governador da Geórgia e muito menos direito a recurso na Suprema Corte, dado às evidências de sua inocência.
Difícil não imaginar que se trata de mais um caso de racismo como os que pontuam a crueldade do sistema jurídico e a sociedade racista dos Estados Unidos, especialmente nos estados sulistas como a Geórgia.
Como é difícil não suspeitar que o caso do Toni foi uma expressão pura e cabal de racismo.
Uma condenação prévia: um negro que adentra a uma pizzaria freqüentada por rapagões e moçoilas de classe média alta de Cuiabá, num bairro idem, embora predominantemente de repúblicas estudantis (o Boa Esperança fica ao lado do campus da UFMT) é um bandido. E ainda mais se este negro acidentalmente esbarra na namorada de um desses fregueses.
Afinal, aquele não é um lugar para negros. Pior ainda. Que atrevimento! Um negro que deveria estar na senzala não pode adentrar a uma casa grande dos pequenos burgueses e tocar a mulher branca do sinhozinho.
Então, eis seu crime. E está decretada a pena de morte. Não se sabe se os policiais e o empresário (sinhozinho) estavam armados. Se estivessem teriam desferido vários tiros?  Tenho dúvida. Não sei se não preferiram mesmo usar como instrumentos de execução os socos e pontapés. Afinal, esta na moda uma das marcas da intolerância: matar a porradas negros, homossexuais e todos que esses “bad boys” não toleram por serem diferentes deles, supostamente bem nascidos, bem nutridos e crentes da impunidade. E com um ingrediente macabro: eles se divertem.  E não raras vezes filmam e jogam em suas redes sociais.
Seguindo o mesmo “modelito” que a imprensa em geral aplica a esses casos, todos ciosos a dar voz e vez aos assassinos da elite, tentam desqualificar o morto. Versões diversas surgem por todos lados dando conta que ele tinha passagens pela polícia, era drogado, perdeu a vaga no convênio da UFMT e outras informações nefastas. Como sempre trabalham com meias-verdades, com deturpações dos fatos e a omissão de outros.
Essas versões são disseminadas por advogados e familiares dos assassinos, que encontram voz em veículos de comunicação que, deliberadamente ou não, as propagam sem questionar o contexto da vida do Toni e os depoimentos de amigos, colegas e ex-namorada, todos, unanimemente, testemunhando sua conduta passível e respeitadora.
É compreensível que os advogados e familiares tomem tal atitude. Mas não justifica a postura dos representantes da Universidade Federal de Mato Grosso, que qualificaram o Toni como um indivíduo de má conduta.
O setor da UFMT responsável pelo convênio entre o governo brasileiro e os governos dos países africanos de língua portuguesa, que permitem jovens daqueles países estudarem no Brasil, sempre foi omisso e racista com esses estudantes. Poderia desfilar aqui uma série de descasos, dificuldades criadas e declarações preconceituosas. Não é o caso agora.
Por enquanto fica o registro de que o Toni sempre buscou desesperadamente lutar contra o vício do crack e encontrou pouco apoio na UFMT. Seus amigos se mobilizaram, igualmente seus colegas e professores. Mas a instituição se agarrou na burocracia. Por ele não conseguir mais freqüentar as aulas, o desligaram do convênio, pura e simplesmente. E ficou por isso. Contudo não pouparam declarações cruéis, insensíveis e até irresponsáveis na imprensa.
Esta é a mesma instituição que ignora que drogas como o crack estão se proliferando dentro e na periferia do campus da UFMT do Boa Esperança. Foi ali mesmo que o Toni se viciou. Nas imediações da república em que ele morava, assim como nos corredores da UFMT, a droga e traficantes transitam livremente. Que providência a instituição tem tomado acerca disso? Prefere tapar os olhos e ajudar a condenar seus jovens alunos.
Foi-se o tempo em que o romantismo e a rebeldia de fumar um baseado faziam parte do cotidiano universitário. Agora o ambiente universitário é um dos mercados de drogas pesadas, assim como seu entorno. E a tragédia do crack, a pior delas, bate à porta de todos nós. Meus amigos e colegas, muitos deles vivendo esse drama familiar, sabem do que estou dizendo. Acompanhei esses dramas quando morava ainda em Cuiabá.
Eu mesmo o vivo bem de perto. Tenho um irmão que vive a perambular pelas ruas de Goiânia se consumindo pelo crack. Gilmar, um dos sete filhos adotivos de minha mãe, era um rapaz trabalhador desde criança. Estudou, casou, formou família. Suas três filhas e esposa não agüentaram viver aquela tragédia e o abandonaram. Desde então passou a viver nas cracolândias do bairro Vila Nova, na capital de Goiás.
Minha mãe, já com seus 74 anos e morando agora em Goiânia, acompanha seu infortúnio e, dentro de suas limitações, nos mobiliza a todos para tentar salvá-lo.
O Toni tentou sobreviver. Poucos meses antes de voltar para Brasília, o recebi na minha casa, a qual ele freqüentava com os demais estudantes guineenses. Minha mulher era amiga dele, chegaram de Guiné-Bissau juntos. Ele para curso Economia e ela, Publicidade. Éramos capazes de deixar nossa casa aberta para ele, junto com meus filhos. O Toni não era um bandido. Repito: era uma pessoa amável e respeitadora.
Naquela tarde fria de julho e Cuiabá melancólica devido à carência de seu sol escaldante, o Toni chegou desesperado. Primeiro pediu dinheiro emprestado. Depois, muito envergonhado, chorou no nosso colo. Pediu ajuda, implorou para que afastássemos aquela sua vontade incontrolável de querer consumir a droga. Então começamos a mobilizar os amigos, colegas e seus professores. Ele necessitava de tratamento para poder concluir os estudos e voltar para o seu país.
Dois meses depois voltei para Brasília. Mas acompanhamos daqui a vida do Toni. Ficamos sabendo que ele havia ido para o tratamento. Depois fomos informados que havia vendido tudo que tinha e foi obrigado a entregar toda a sua bolsa de estudos para os traficantes. Quando perdeu a bolsa, foi para a rua mendigar. Foi num desses momentos que entrou na pizzaria naquela noite do dia 22 de setembro.
O Toni é filho de uma família de classe média alta em Guiné-Bissau. Seu pai é agrônomo e possui uma pequena fazenda. Idealista, sempre quis que os filhos tivessem boa formação para ajudarem no desenvolvimento do país. Tem irmãos que estudam ou estudaram na França, Inglaterra e Portugal. Parte da família fez carreira nas forças armadas, onde um tio seu é um dos comandantes.
Certa vez o Toni foi flagrado pela polícia em Cuiabá carregando um botijão de gás que ganhou de um dos colegas, pois o seu ele havia vendido para comprar crack. A polícia o abordou, o levou preso, apesar de afirmar que o objeto era dele. Passou o dia inteiro na delegacia, jogado numa sala e só saiu de lá depois que acionou a Polícia Federal, jurisdição da qual estão os estudantes africanos.
Aqui abro um parêntese. Não foram poucas as vezes que a UFMT acionou a Polícia Federal para perseguir os estudantes africanos que, por um motivo ou outro, não estavam freqüentando aulas ou haviam formado e ainda estavam no Brasil tentando pós-graduações ou empregos.
Setores da imprensa de Cuiabá, motivados por advogados e familiares dos assassinos, utilizam este caso do botijão, entre outros sem gravidade, para propagar que o Toni tinha passagens pela polícia. Como se a tal “passagem” fosse uma sentença de morte.
Antes de continuar, peço licença para contar duas histórias:
Em 1980, um rapaz que faria 20 anos dali a poucas semanas, cursava Agrimensura na antiga Escola Técnica Federal de Goiás e fazia estágio numa cidade a 20 quilômetros de Goiânia. Numa tarde, como fazia todos os dias, entrou às 17 horas no ônibus que o levaria de volta para casa, quando dois policiais o abordaram, algemaram, jogaram no camburão e levaram para a delegacia. Lavraram um boletim e mal ouviram a versão do rapaz. Em seguida, para fazê-lo confessar que havia feito um assalto, os policiais deram-lhe tapas nos ouvidos, murros, beliscões no nariz, nas orelhas, cascudos e ameaçaram quebrar seus dedos com um alicate e queimá-lo com cigarros.
As sevícias duram até que um dos policiais sugeriu ao delegado que o rapaz fosse levado para que a vítima identificasse o assaltante. Àquela altura a cidade inteira já sabia da prisão. Ao chegar à casa da senhora assaltada, de onde foram levados um televisor, aparelho de som e uma bicicleta do filho, o carro da polícia encontrou uma multidão que queria linchar o “bandido”. Os policiais com dificuldade abriram um corredor para a mulher chegar até o carro. Quando ela olhou pelo pára-brisa foi logo dizendo: “Não, não é este. O ladrão é branco!”.
Em 2004, um homem de 44 anos foi abordado pela polícia próximo à sua casa. Estranhou o fato de os policiais o obrigarem a ficar ao lado da viatura, longe do seu carro. Então um dos policiais faz uma rápida revista e aparece com um revolver e um pacote do que seriam drogas. Imediatamente o homem protesta, denuncia a “plantação” e só não vai preso porque estava com a identificação de secretário-adjunto de Comunicação Social do governo de Mato Grosso e ameaçou denunciar os policiais, que imediatamente fugiram do local.
O homem e o rapaz de 24 anos antes é a mesma pessoa: eu. Poderia aqui contar outras várias histórias de arbitrariedades e prisões às quais fui submetido.  Por ser negro, tido como ladrão, drogado e traficante, tive passagens pela polícia. Infelizmente aquela piadinha infame que de vez em quando ouvimos por aí  é de fato uma máxima entre policiais: “Preto parado é suspeito, correndo é ladrão”.
Quantas passagens pela polícia justificam uma morte?
Mereceria eu morrer por ter cometido o crime de ter nascido negro?
Mereceria eu morrer pelo crime de provocar aos policiais a sanha assassina de quem ainda nos vê como escravos, como sub-raça, como seres desprezíveis?
Mereceria eu morrer porque há cinco séculos retiraram meus antepassados da África, jogaram num navio negreiro, atravessaram o Atlântico, os leiloaram, os submeteram a ferro e fogo, os jogaram nos canaviais, minas e fazendas, os subjugaram nas senzalas, colocaram no pelourinho, humilharam, sugaram seus sangues e suores, para depois, com a abolição, os jogarem as ruas como se fossem animais, sem direito a dignidade?
Deveria eu morrer por ser filho de Clarice Laura e José Orozimbo, neto de José e Regina e de Josefa e Pedro Alves, por sua vez netos e filhos de escravos?
Este é meu crime?
Por favor, se é este o meu crime, então que me matem! Mas me matem apenas uma vez. Não façam como estão fazendo com o Toni.
Depois de ser trucidado pelos “bad boys da intolerância”,  Toni corre o risco de ser massacrado, pisoteado, sangrando até a última gota da sua dignidade.
PS: O corpo do Toni ainda está no IML de Cuiabá aguardando resultados de exames pedidos pelo delegado que acompanha o caso e a chegada da família para liberá-lo.
Dona Cecília, mãe dele, me informou que um de suas irmãs, que é arquiteta na França, deve vir ao Brasil.
A Embaixada de Guiné-Bissau em Brasília também está acompanhando o caso e prestando apoio à família.
O governo brasileiro, por meio do Itamaraty, já se manifestou, repudiando o crime e pedindo desculpas à família e aos guineenses.
Amigos e compatriotas do Toni estão se mobilizando em Cuiabá e aqui em Brasília, denunciando o assassinato e pedido para que seja tipificado como motivado por racismo.

Se desejarem ir ao link onde o texto foi originalmente publicado, acessem: mariafro.com.br/wordpress/2011/09/26/joao-negrao-as-duas-mortes-de-toni-guineense-assassinado-em-cuiba/

domingo, 7 de agosto de 2011

Cinco anos da Lei Maria da Penha - avanços e desencontros


 
Celebremos as possibilidades de enfrentarmos a violência cometida contra as mulheres na sociedade brasileira, mas, igualmente, atentemos para as limitações na aplicação da Lei Maria da Penha. Reconheço que alguns avanços estão consolidados, como, por exemplo, a maior visibilidade para os casos de violência contra a mulher, superando a condição de uma violência varrida para debaixo dos tapetes pelas famílias, pelas mulheres vítimas, pelas autoridades policiais, pela mídia. 
 
A efetiva aplicação da Lei Maria da Penha ainda tem um grande percurso, pois necessita de uma transformação da sociedade. Como lei já se efetivou, na esfera jurídica, mas como prática caminha a passos de tartaruga. Não podemos perder as oportunidades de larçarmos em todos os âmbitos da sociedade o debate sobre a violência sofrida pelas mulheres. Discutir gênero deve ser uma tarefa empenhada por todos que levantam a bandeira da garantia de direitos à mulher, é importante que possamos debater questões como: "eu não sou machista, eu ajudo minha mulher em casa", "as mulheres são muito fortes, atrás de um grande homem sempre há uma grande mulher", "a violência sexual ocorre porque a mulher se expõe, porque ela provoca". 
 
 
Não podemos naturalizar nem mesmo as pequenas birncadeiras, piadas, ou marketings feitos com desvalorização e exploração da imagem feminina, pois esses são processos que só ratificam a inclusão perversa da mulher em uma sociedade em que predomina o machismo e em que os direitos são violados camufladamente. 
 
Resta apenas citar um evento recente:
O ex Ministro da Defesa, Nelson Jobim, que foi convidado a se retirar do cargo após inúmeras declarações constragedoras, em que ficou declarado o seu desrespeito pelas mulheres, tanto pela presidenta, - pois acredito que a composição machista de seu pensamento lhe fazia crer que uma mulher na presidência não teria a coragem de enfrentá-lo (ainda mais porque é amigo pessoal do ex-presidente Lula) -, quanto pelo desrespeito a outras duas figuras femininas da alta cúpula do Governo (Ministério das Relações Internacionais, Chefe da Casa Civil). 
 
As declarações do Ministro só revelaram o seu machismo, e a doce ilusão machista que compõe o seu pensamento e que estrtura o seu comportamento: mulher é fraquinha, mulher não merece respeito, mulher não intimida, o poder da mulher é subjagado ao poder do homem. A presidenta Dilma respondeu à altura. 
 
Celebremos a mulher, os direitos garantidos, as políticas públicas de defesa da garantia desses direitos! Mas também nos tornemos atentas aos processos perversos de inclusão social da mulher, à percepção de que para termos os direitos garantidos é preciso mais do que a promulgação de uma lei, é preciso a transformação da sociedade, o que só ocorre por meio de debates, diálogos e desvelamento de todos os tipos de violência que ainda permeiam a vida das mulheres brasileiras.

Cinco anos da Lei Maria da Penha, e mais de quinhentos anos de violência. 
 
Abaixo uma análise da situação autal da Lei Maria da Penha, publicada hoje no site do Terra.
 
 
 
 
 
 
 
Por Claudia Andrade
Direto de Brasília
A Lei Maria da Penha, que classifica a violência doméstica e familiar contra a mulher como uma violação aos direitos humanos, completa 5 anos neste domingo ainda com um longo caminho a percorrer para que sua aplicação seja efetiva. "Comemorar não significa dizer que estamos na plenitude do tratamento que deve ser dado às mulheres", disse a ministra Iriny Lopes, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em seminário realizado essa semana em Brasília para debater a lei. 

A ministra listou pontos que, em sua opinião, devem ser aperfeiçoados na aplicação da lei, como aumentar o envolvimento de prefeituras e governos estaduais na assistência à mulher vítima de agressão, garantir recursos para implantação de políticas para esse público e estrutura nas secretarias dedicadas a receber e acompanhar as mulheres. "A rede precisa não só receber, mas acompanhar essas mulheres. É preciso ter casas abrigo. E é preciso ter programas regionais que promovam a autonomia financeira das mulheres, para que elas não fiquem dependentes desses agressores." 

O atendimento nas pequenas cidades também é apontado como um problema pela mulher que deu nome à lei. "Tudo é feito nas grandes cidades, principalmente nas capitais. As pequenas cidades ainda estão esquecidas", diz Maria da Penha, que ficou paraplégica por conta de um tiro que seu ex-marido desferiu contra ela nos idos dos anos 1980. Depois que ele tentou novamente matá-la, ela passou a buscar punição, que veio apenas em 1996, com dois anos em regime fechado. Quase dez anos depois, a repercussão deu origem à lei.

Maria da Penha também afasta um mito em relação aos casos de agressão: "Muitos dizem que os casos de assassinato acontecem quando a mulher denuncia, o que não é verdade. O assassinato ocorre quando há descaso da autoridade." 

A coordenadora do Fórum de Mulheres do Distrito Federal, Leila Rebouças, também chama a atenção para o atendimento, principalmente pela pouca quantidade de delegacias especializadas em receber a mulher vítima de agressão. "Nas delegacias comuns, o atendimento é precário. Há casos de denúncias em que o atendimento é feito por homens que reduzem a situação de violência sofrida e desestimulam a mulher a dar continuidade. Todas as delegacias deveriam ter uma subseção específica para esse tipo de atendimento." 

Diretor do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Miguel Cançado diz que o sistema judiciário precisa se preparar para dar vazão aos processos contra agressores, sob o risco de deixar para a sociedade uma sensação de impunidade. "A lei não muda os costumes, a sociedade. Pode criar barreiras, mas não resolve a questão da violência. O que incomoda é a possibilidade de ser punido", ressalta. 

Divulgação de casos é positiva

A assessora jurídica da Associação de Mulheres Empreendedoras (AME, Tatiane Araújo Pereira, diz que é comum ouvir críticas de mulheres que demonstram certa incredulidade na lei, mas diz que a efetiva aplicação é uma questão de tempo. Para ela, a primeira etapa da legislação já foi alcançada: a divulgação dos casos, que leva à conscientização das mulheres sobre seus direitos. "Os casos de violência doméstica agora são noticiados. Antes já aconteciam e ninguém sabia."

A Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça considera que a lei revelou uma demanda de mulheres em busca de seus direitos em casos de agressão que antes estava reprimida."Com a lei, as mulheres se sentem mais estimuladas a denunciar, porque já temos muitos casos concluídos com a punição aos agressores", disse a ministra Iriny. "Mesmo com o número de casos julgados não ser todos os que a gente queria, e mesmo ainda havendo um debate doutrinário sobre a lei, o balanço é positivo."

Há questionamentos sobre a constitucionalidade da Lei Maria da Penha sob o argumento de que feriria a isonomia ao tratar a mulher de forma diferenciada. O entendimento do secretário de Reforma do Judiciário, Marcelo Vieira, é de que a legislação trata de forma desigual os que estão em situação desigual. Uma ação sobre o tema aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal que, em outra ação relacionada à lei, em março deste ano, reconheceu sua constitucionalidade ao negar habeas corpus em favor de um acusado de agressão. 

Saiba o que o artigo 7º da Lei Maria da Penha estabelece como "formas de violência doméstica e familiar contra a mulher": 

Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; 
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. 


Fonte: Portal Terra
Imagem retirada da Internet: mulher

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Rosana Carneiro Tavares - Ensaio curto




Duas importantes causas



Sempre fui afeita às causas dos Direitos Humanos em nossa sociedade. Principalmente, porque vivemos um processo de desintegração do social, em favor do individualismo e da competitividade cruel, na qual muitos não conseguirão nem ao menos estar na condição de competir, haja vista a grande exclusão em que se encontram inseridos (ou incluídos?).

Pois é, agora me vejo diante de duas causas importantes, que coloca em pauta duas categorias sociais, dignas de reivindicação de direitos humanos, que demandam um olhar especial de toda a sociedade: as crianças e os adolescentes; e as pessoas com transtorno mental. A criança e o adolescente já têm garantido em lei o seu pleno desenvolvimento biopsicossocial, sob responsabilização do poder público, bem como de toda a sociedade em geral. As pessoas com transtorno mental, igualmente, têm a garantia de ser tratadas e de circular livremente pela sociedade, com prioridade absoluta para a convivência familiar e participação na comunidade.

E agora? Retomando os acontecidos da semana passada, tendemos a incriminar um sujeito, transtornado mentalmente, culpabilizando-o individualmente pelo seu feito, em defesa (diga-se de passagem, legítima) dos adolescentes vítimas desse ato tão insano. Um sujeito que, ao que tudo indica, foi abandonado pela família desde a morte da mãe, foi alvo de discriminações sociais (não querendo aqui colocá-lo na situação de vítima, pois acredito que em tudo há mão dupla, temos sim responsabilidade e participação na nossa condição social), tem histórico de transtorno mental nos antecedentes familiares, tem uma história de vida indicativa de comportamento inadequado (isolamento social, idéias obsessivas) e que, ainda assim, não teve acesso a um tratamento adequado (hoje há uma gama de medicamentos, na rede pública, que poderiam ter contido a sua atividade delirante, como por exemplo Haldol e Olanzapina).

Por outro lado, há doze adolescentes que não tiveram a oportunidade de se desenvolver plenamente, que tiveram seus planos e projetos interrompidos abruptamente, e cujas famílias agora lutam incessantemente para transformar uma grande ferida em uma cicatriz, tudo por causa de um ato de insanidade: um sujeito que, em sua atividade delirante, se sente na obrigação de cumprir uma missão, de levar adiante um ato "terrorista", em defesa de uma ideologia que não faz sentido a qualquer racionalidade.

Eis a questão: a quem culpar, já que vivemos em uma sociedade em que as culpabilizações são individuais? A família? Por abandonar esse sujeito transtornado e não exigir um tratamento para ele? Aos homens que venderam uma das armas? Pois, pode-se garantir que eles sabiam que a arma poderia ser utilizada para qualquer feito, embora digam que se soubessem que era para cometer uma atrocidade dessas não teriam vendido? À escola? Por ter "permitido" que as discriminações se disseminassem e colocassem esse sujeito já em condição de vulnerabilidade (devido a todo o seu histórico familiar e de vida pessoal), mais vulnerável ainda? À segurança pública? Por não ter criado uma política que pudesse efetivamente proteger o ambiente escolar dos insanos?

O dilema está lançado, mas as possibilidades conclusivas são várias: esse sujeito, que a la Dom Quixote se armou e foi à luta para “cumprir a sua missão” pode suscitar a ira social e mobilizar uma grande parcela da sociedade a exigir transformação; pode promover mudanças nos espaços escolares e na saúde coletiva, e fazer com que estes realmente cumpram a sua função de transformar pessoas, de produzir reflexões; mas pode, igualmente, confundir a transformação necessária com a produção de armaduras invioláveis em defesa da “sociedade do bem” ( O que já se sabe ser improdutivo. Trancafiar os que não se adaptam, isolar os que não conseguem viver adequadamente na sociedade, nunca foi a melhor solução. Retirar do convívio social o desadaptado só cronifica a situação).

A situação criada entre o transtornado e os inocentes mostra a toda a sociedade o quão vulneráveis somos todos, o quanto os processos de mudança social têm que passar por eixos de muito mais profundidade do que até então se tem feito. Não são apenas políticas educacionais, de desarmamento ou de segurança pública. São produções de reflexões acerca de que sociedade queremos, que vínculos sociais queremos reforçar, que humanidade queremos que se perpetue.

A princípio, pensamos que um sujeito, totalmente maluco, que põe uma armadura de cavaleiro e resolve desbravar o mundo e conquistar terrenos só existe mesmo no romance de Cervantes. Mas, quando nos deparamos com um caso, como o da Escola Municipal Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, vemos que muitos Dons Quixotes existem, que estamos vulneráveis e que precisamos fazer algo, pois as armas de hoje não são mais lanças, e nem os alvos um simples moinho de vento, podem ser crianças ou adolescentes.

No entanto, precisamos despir a racionalidade ocidental, a reificação dos processos sociais, para efetivamente propor soluções. São interfaces que precisam se conectar: saúde coletiva, educação, assistência social, segurança pública, todos fundamentalmente estruturados pela garantia dos direitos humanos. Pois, do contrário, o fato pode apenas tornar-se palco de espetacularização da mídia, e virar cinzas, assim como os livros de cavalaria de Dom Quixote foram queimados e ele continuou em sua missão de desbravar o mundo, se machucando, sofrendo, perdendo os dentes e encontrando Sanchos Panças que acreditavam e creditavam as suas fantasias.




Imagem retirada da internet: Dom Quixote

terça-feira, 15 de março de 2011

Manifesto contra todas as formas de racismo em um país como o Brasil, de miscigenação e, paradoxalmente, de negação da cultura negra.




O texto que se segue é de Zulu Araújo, arquiteto, produtor cultural e militante do Movimento Negro Brasileiro. Foi Diretor e Presidente da Fundação Cultural Palmares, é colunista do Terra Magazine. Merece destaque, pois esse texto retrata uma indignação com um silêncio para a discriminação racial, que não cabe em nosso país, haja vista a nossa história. Esse silêncio, muitas vezes disfarçado de ausência de preconceito, só reafirma a discriminação e coloca aqueles que são alvos de preconceito na condição camuflada de incluído. Resta citar Martín-Baró(psicólogo e sacerdote, que viveu em El Salvador, trabalhando pelas causas sociais, pelos direitos humanos e pela diminuição das desigualdades, e morreu assassinado pelo comando do exército salvadorenho), que afirmava que a pior forma de poder é aquela que vem velada pelo discurso, na qual a população subjugada não tem nem mesmo condições de se preceber como vítima de abuso do poder. O mesmo com a discrimação racial: enquanto não quebrarmos o silêncio do preconceito camuflado, e não bradarmos um grito de libertação, as discriminações serão escondidas pela hipocrisia da sociedade e a população discrimanda será ainda capaz de sentir vergonha por ser discriminada, como se fosse um problema seu e como se a superação dessa condição dependesse só de si. Palmas para Zulu Araújo, que conseguiu tão bem retratar a situação brasileira!!!!


Racismo, Cultura e Cidadania

Por Zulu Araújo,
de Brasília-DF *

No início do mês de março o mundo da moda foi sacudido com uma notícia bombástica. Um dos maiores estilistas do mundo, John Galliano, foi demitido da famosa grife Dior. Antes, havia sido preso e processado pela polícia francesa, por haver xingado e proferido palavras racistas e antissemitas a um casal de judeus, durante um breve entrevero num bar parisiense. A notícia correu mundo, foi objeto de análises, comentários e discussões em blogs, jornais, revistas e o que mais houvesse de mídia na face da terra. Até mesmo a ganhadora do Oscar 2011, Natalie Portman, se pronunciou de maneira drástica acusando o famoso estilista de nojento e asqueroso e que jamais voltaria a trabalhar com ele. Enfim, uma punição exemplar para uma prática inaceitável no mundo civilizado. Ainda no mês de março, carnaval de Salvador, Camarote do Reino, circuito Barra/Ondina, o cantor Márcio Vitor, líder da Banda Psirico, um dos sucessos do carnaval baiano, é xingado e agredido com palavras racistas por um empresário baiano, (preto, pobre e fedorento) em plena folia, na presença de milhares de pessoas. Márcio Vitor reage, chama a polícia, pede a prisão do criminoso, xinga, manda ele enfiar o seu dinheiro no cofrinho. A polícia leva o meliante preso e o solta logo depois com a desculpa de que não havia queixa formalizada contra o mesmo e nada acontece.

Estes dois episódios são marcantes para compreendermos a luta contra o racismo nos dias de hoje ou de como a força, a consciência e o poder de uma comunidade podem fazer a diferença no exercício da cidadania e da igualdade e de como a fragilidade, a ingenuidade e a tolerância com a discriminação produzem estragos fenomenais na auto estima do nosso povo. Enquanto o episódio ocorrido em Paris (aparentemente uma briga de bar entre um bêbado e um casal conservador) gerou comoção mundial e uma pronta e dura resposta de uma das maiores empresas do mundo da moda, mesmo arriscando o seu faturamento e imagem, na Bahia, fato semelhante contra um artista negro, não passou de algo pitoresco ocorrido no meio da folia momesca. Com raras exceções, como a declaração da Vereadora da capital baiana - Olívia Santana, que apesar de discordar das composições misógenas e de baixo nível, com que o cantor tem brindado o público baiano, declarou estar indignada e solidária ao artista, por conta da discriminação sofrida, nenhum outro grande nome do estrelato baiano manifestou-se, seja do mundo da cultura ou do mundo da política. Para completar uma curiosidade: a Bahia possui duas secretarias de promoção da igualdade. A mudez foi total. Nem mesmo os donos do Camarote do Reino, do qual o tal empresário era convidado, manifestaram-se. Nem o mais leve pedido desculpas ocorreu. Aliás, até o próprio ofendido, declarou que sua resposta seria cantando e que não tomaria nenhuma medida judicial sobre o caso. Como se um canto de louvor a raça pudesse num passo de mágica converter racistas ao convívio da igualdade e eliminar a ofensa que foi cometida não apenas contra o cantor, mas a maioria da população baiana.

É muito pouco. Pouco mesmo, para uma cidade que possui mais de 85% de sua população de origem negra e que orgulha-se de ter um movimento negro forte e organizado e que produz uma das festas populares mais importantes do mundo, gerando milhões e milhões de reais que são apropriados, de forma no mínimo imoral, por parte de uma elite provinciana, insensível, racista e conservadora. E, é esta diferença brutal de consciência e poder nestes dois episódios que têm me deixado preocupado. Sei perfeitamente que a cultura do racismo está impregnada em nossa sociedade fundamente, fruto da nossa história escravocrata. Sei também que as políticas públicas de promoção da igualdade ainda são incipientes em nosso país. Também não acredito que o racismo será superado apenas com medidas punitivas, pois esta manifestação odiosa do ser humano é tão antiga quanto sua própria existência. Mas, não podemos perder a oportunidade, de em situações como estas deixar de exercitar, na plenitude, o que está posto em nossa legislação. RACISMO É CRIME. E como tal deve ser tratado.

Enfim, a Copa do Mundo está vindo aí, e os racistas de plantão podem nos deixar numa situação vexatória. Vale a pena inspirar-se no exemplo da Dior, até porque o respeito a diversidade não pode ser apenas uma figura de retórica para discursos acadêmicos ou em períodos de campanha eleitoral, tem que estar presente no nosso dia a dia, em particular nas nossas festas populares, que são a expressão maior, no plano da cultura desta grande diversidade cultural que é o Brasil.

Toca a zabumba que a terra é nossa.


Texto publicdo no Terra Magazine


Imagem: Zulu Araújo

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Institucionalizar ou desinstitucionalizar, buscando a promoção do pleno desenvolvimento do cidadão?






A carta aberta que se segue está publicada no site do Conselho Fedral de Psicologia e eu compartilho com vocês, para que possamos refletir sobre a prática histórica da sociedade de excluir aqueles que não se adequam às exigências socias (vejamos a História da Loucura em Foucault), como se tivessem de ser extirpados da sociedade até que sejam "domados", para que possam circular livremente, quando estiverem plenamente "adaptados".

Essa prática, ao invés de transformar a realidade, apenas acentou os problemas: os loucos cronificaram o seu adoecimento, os dependentes químicos se viram incapazes de enfrentar a vida, o conflito com a lei tornou-se cada vez mais crime hediono.

Enfim, fechar os olhos para os gritos que emergem da garganta de uma determinada parcela da população, em nome de uma imposição de "ordem social" só pode trazer o caos. Precisamos refletir sobre isso, precisamos nos inserir na construção e execução de políticas públicas que possam garantir os direitos humanos e transformar essa realidade social.

A carta que se segue delineia as práticas políticas com relação ao uso de drogas e a proposta do atual governo para intervir nesse problema. Nos permite fazer reflexões sobre como estamos conduzindo essa problemática em nossa sociedade e nos coloca no papel de concretizar ações que possam efetivar transformações importantes diante do caos social instalado.

Embora não seja uma carta que solicite adesões, podemos, a partir dela, oferecer a nossa contribuição no pequeno espaço de circulação de cada um...

Boa leitura!



18.01.2011
Carta aberta: ponderações sobre políticas de drogas no Brasil

Carta aberta à sociedade brasileira

Há muito ainda a fazer até que a questão das drogas seja encarada como problema de saúde pública e não de justiça criminal, mas podemos estar iniciando uma caminhada que poderá desaguar nessa transformação.
Julita Lemgruber
O tema das drogas é articulador de diferentes olhares e formas de pensar. Este documento expressa a visão de um grupo formado por estudantes, professores e pesquisadores de diferentes campos do conhecimento; trabalhadores de Saúde, Assistência Social, Educação; operadores do Direito; gestores públicos e ativistas unidos pelo interesse no tema das políticas públicas sobre drogas, a partir de compromissos claros com os Direitos Humanos e a promoção da cidadania ativa para pessoas que usam drogas. Além disto, defendemos os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde, da Reforma Psiquiátrica e do Sistema Único da Assistência Social. É a partir destes múltiplos lugares e, principalmente dos compromissos que nos unem, que gostaríamos de nos manifestar sobre as recentes mudanças na Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (SENAD).
Historicamente, as políticas públicas sobre drogas têm se constituído em importantes dispositivos de criminalização e medicalização (criminoso-prisão na segurança, dependente-internação na saúde), cujos efeitos têm recaído sobre distintos grupos sociais vulneráveis e estigmatizados, frequentemente associados a qualquer uma das etapas dos processos de produção, circulação, comércio e consumo de substâncias qualificadas como ilícitas. As diretrizes que embasaram as políticas de drogas no país, desde a Lei Nº 6368/76, até a Lei Nº 11.343/06, foram demonstrativas de um tensionamento entre duas arenas distintas: de um lado, a preocupação diante de um problema visto como pertinente à “Saúde Pública”; de outro, a compreensão de que este problema social, tendo como única origem comportamentos desviantes e criminosos, deveria ser de responsabilidade única dos agentes executores das políticas de Segurança Pública. Deste modo, embora a proibição às drogas tenha até hoje como justificativa a proteção à Saúde Pública como bem comum, na prática as ações educativas e preventivas com relação às pessoas que usam drogas sofreram pressões alheias ao campo político-reflexivo da Saúde.
Nascida sob o impacto da adesão brasileira ao documento da UNGASS 98, na égide da “war on drugs”, a SENAD constituiu o tema das drogas como assunto de Segurança Nacional, e organizou-se a partir de uma estrutura militar. Nos últimos anos, algumas mudanças começaram a ocorrer. A começar pelo nome: a secretaria deixou de ser “Antidrogas”, tornando-se um secretaria “de Políticas sobre Drogas”. Além disto, a SENAD teve papel importante na condução do processo de reformulação do Plano Nacional sobre Drogas, no incentivo ao fortalecimento e qualificação dos Conselhos Estaduais e Municipais sobre Drogas; no âmbito da produção de conhecimento, a SENAD apoiou e organizou diretamente a realização de seminários com experiências internacionais, e teve papel fundamental para a criação da Rede de Pesquisa sobre Drogas. Não obstante, subsistia esta estrutura militar, a submissão estrutural ao Gabinete de Segurança Institucional, antiga Casa Militar da Presidência da República.
Neste sentido, a mudança da SENAD para junto do Ministério da Justiça é coerente com a história recente desta instituição. O contrário disto - sua manutenção em uma estrutura militar - seria uma explícita profissão de fé na “guerra às drogas”; já o seu deslocamento para a Casa Civil como uma das primeiras medidas do governo Dilma, constitui-se um indicativo de novos olhares para os múltiplos temas relacionados às drogas.
Diante do pronunciamento de Alexandre Padilha, podemos projetar parte desta nova mirada. Em seu discurso de posse, o novo ministro da saúde, infectologista, falou de seu aprendizado político em meio à construção da resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids, junto às pessoas mais diretamente envolvidas o tema da Aids em suas vidas, em seus cotidianos. Pois afirmamos: assim como o protagonismo das pessoas vivendo com HIV/Aids foi essencial para tornar a política brasileira de controle da Aids um exemplo exitoso, também as políticas de drogas devem ser construídas com a participação de pessoas que usam drogas, ampliando olhares e permitindo avançar. Em uma perspectiva coerente com tais ideias, o novo ministro da saúde manifestou-se especificamente sobre o problema do crack com as seguintes palavras:

Os serviços de atenção não podem fazer com que as pessoas percam sua autonomia, percam o contato com a família, percam o contato com o espaço social onde se constrói sua identidade. Porque nós não queremos pessoas permanentemente internadas, nós queremos evitar esse mal e fazer com que as pessoas sejam ativas e protagonistas na vida e que continuem a viver.

Acreditamos que só é possível enfrentar a questão das drogas, naquilo que afeta a sociedade como um problema social, com o incentivo e a garantia de que as pessoas que usam drogas sejam protagonistas das políticas de drogas. Para além de um posicionamento ético, trata-se de projetarmos modos de vida em conjunto com sujeitos que hoje, diante da complexidade do tema, são ora responsabilizados e criminalizados, ora defrontados com políticas públicas pautadas na tutela, na internação, nos dispositivos de manejo, nas contenções químicas e físicas.
Os esforços no enfrentamento aos usos problemáticos de crack, ao ressaltarem sua parcela “combativa” diante de contextos considerados perigosos e, principalmente, ao ressaltarem os efeitos das drogas sobre o organismo, correm o risco de não olhar para as potencialidades da promoção de sujeitos de cuidado, autores de seus próprios projetos de vida. Devemos observar mais de perto experiências de descriminalização como a de Portugal, que completou 9 anos e é tido como exemplo mundial em redução do uso de drogas entre jovens, nas taxas de criminalidade e nas mortes por overdose, e pelo aumento no acesso a tratamento público de qualidade, no investimento em pesquisa e no acesso à informação. Em tais contextos, torna-se possível aprender o que as pessoas que usam drogas têm a nos ensinar. Torna-se possível a construção de uma política com a participação efetiva das pessoas que usam drogas, incluindo aí o direito de livre organização e a participação destas pessoas nos conselhos sobre drogas nos âmbitos municipal, estadual e federal.
Avaliamos positivamente a recente transferência da SENAD para o Ministério da Justiça. Além disso, recebemos com entusiasmo a indicação de Pedro Abramovay para a coordenação geral do órgão, ele que no governo anterior teve participação importante, sendo inclusive o mais jovem Ministro da Justiça brasileiro, em substituição a Tarso Genro. Além disto, como secretário de assuntos legislativos do ministério, Pedro teve participação em processos importantes como a criação do PRONASCI, a reforma do código de processo penal e a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública. Ao deslocar para a SENAD um quadro político com experiência tão sólida, com forte compromisso com os Direitos Humanos, o governo brasileiro oferece uma demonstração inequívoca de que é possível sonhar com uma política de drogas mais humana, democrática e cidadã.
Acreditamos que um dos principais desafios desta nova gestão e nova estrutura institucional da SENAD será, partindo do âmbito do Ministério da Justiça, consolidar as Políticas Públicas sobre Drogas a partir de perspectivas essencialmente intersetoriais. Com relação a isso, também depositamos esperanças de maior abertura para o diálogo entre governo e sociedade civil organizada, e também entre as estruturas de governo responsáveis por articular políticas tão complexas quanto os problemas que buscamos enfrentar.
ASSINATURAS Dênis Roberto da Silva Petuco: Cientista social, mestrando em Educação, redutor de danos no CAPSad Primavera (Cabedelo, PB) Renata Almeida: Psicóloga e fonoaudióloga, mestre em psicologia clínica, membro do GEAD (Grupo de Estudos em Álcool e outras Drogas) e do CPD (Centro de Prevenção às Dependências); gerente do CAPSad Campo Verde (Camaragibe, PE); Humberto Verona (psicólogo do SUS e presidente do CFP); Conselho Federal de Psicologia (CFP)

Texto retirado da internet: CFP
imagem retirada da internet: drogas

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Compartilhando...


Compartilho essa notícia... Feliz por podermos exigir mais respeito no tratamento dos transtornos mentais e pelas possibilidades de ampliação de participação social dos antigos pacientes do hospital.


Publicada no Observatório de Saúde Mental & Direitos Humanos, no dia 06/01/2010.
Site:
http://osm.org.br/osm/fechamento-do-alberto-maia-e-marco-historico-para-a-luta-antimanicomial/



Fechamento do Alberto Maia é marco histórico para a Luta Antimanicomial
Maior manicômio de Pernambuco, o Hospital Psiquiátrico Alberto Maia, foi fechado no dia 30 de dezembro de 2010. A instituição, situada em Camaragibe, foi indicada para descredenciamento do Sistema Único de Saúde (SUS) pelo Programa Nacional de Avaliação de Serviços Hospitalares (PNASH), em 2004, devido à situação de abandono em que se encontrava. A instituição foi considerada uma das cinco, dentre 168 unidades psiquiátricas, com péssima qualidade de atendimento.



A cerimônia de fechamento reuniu pacientes, parentes e representantes da luta pelo fechamento dos manicômios e do setor de saúde mental. O fim das atividades da instituição é um momento histórico para o movimento de Luta Antimanicomial. “Achávamos, perante todas as dificuldades, que isso seria impossível. Mas depois de muita luta nós conseguimos”, conta Vera Lúcia Nascimento, militante do movimento de Luta Antimanicomial de Pernambuco.



“Essa luta pelo descredenciamento e fechamento do Alberto Maia teve início em 2004”, relata Vera Lúcia. O movimento buscou espaços na imprensa e o contato direto com a população, fazendo, por exemplo, panfletagens na cidade. No ano de 2008, entregaram uma carta ao governador de Pernambuco, demonstrando suas preocupações quanto ao desrespeito aos Direitos Humanos, no contexto da Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica, além de propostas para criar uma rede de atenção que cuide das pessoas com transtornos psíquicos. Esta rede envolve a família e seu entorno, ajudando a superar os momentos de crise e a conviver em sociedade com sua forma de ser e se relacionar, incluindo também acesso à saúde. Porém, até o final de 2009 todas as ações não obtiveram sucesso. “Todo mês ocorriam de cinco a seis mortes no hospital”, diz Vera.



Segundo ela, o fechamento da instituição foi uma vitória. Tanto a Marcha dos Usuários pela Reforma Psiquiátrica Antimanicomial a Brasília quanto a IV Conferência Nacional de Saúde Mental e as conferências municipais e estaduais que a precederam foram importantes no processo. Por conta da Marcha, integrantes da Luta Antimanicomial de Pernambuco vieram a Brasília e entregaram um dossiê com denúncias contra os maus tratos e mortes em instituições psiquiátricas ao Ministério Público Federal.



“A imprensa enxergou o movimento por conta desses eventos. O Ministério Público Federal e o Estadual assumiram compromisso de tomar uma providência. Ganhamos visibilidade e força no processo de descredencimento do Alberto Maia”, conta Vera. A Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco assinou termo de compromisso com o Ministério da Saúde e com a secretaria de Saúde de Camaragibe para iniciar o descredenciamento final do Hospital Psiquiátrico do SUS, no final de 2009.



“Em janeiro de 2010, uma equipe gestão hospitalar ligada à Coordenadoria de Saúde Mental de Camaragibe começou a trabalhar no processo de melhoria de condições de vida dos usuários e no processo de fechamento do hospital”, diz Solange Mendonça, supervisora de Saúde Mental da Coordenadoria. O grupo era formado por técnicos de enfermagem, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais e psiquiatras.



Ao longo dos 35 anos em que funcionou, mais de mil usuários, de 80 municípios pernambucanos diferentes, passaram pelo hospital. No início do processo de fechamento, 536 portadores de transtornos mentais estavam internados na instituição, segundo a Coordenadoria de Saúde Mental de Camaragibe. “Eles foram sendo transferidos ao longo do ano para casas terapêuticas, alguns voltaram para a residência dos familiares, idosos foram encaminhados para abrigos e outros foram para hospitais de outras cidades”, detalha Solange.



No final do processo, 238 pacientes foram encaminhados para o Centro de Desinstitucionalização localizado no quilômetro 14 da Estrada de, em Camaragibe, sendo que 30 deles se encontram centro terapêutico, pois são portadores de transtornos mentais graves. “O intuito é fazer com que todos eles se reabilitem para que sejam inseridos novamente na sociedade”, afirma Solange.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Ionara Vieira Moura Rabelo - Diário da Palestina

Uma amiga, psicóloga, pesquisadora, louca por conhecimento, casada, tem dois filhos e uma família muuuuito boa, escreve direto da Palestina um e-mail - poético e muito incrível - sobre o cotidiano de sua missão. Quis compartilhar com vocês.....




Sob o céu de Jaffa


Por Ionara Vieira Moura Rabelo*



Há duas semanas, eu estava na praia, era exatamente meio-dia, quando olhei para o céu e parecia 3 da tarde, pela posição do sol!. Fiquei com uma sensação de estranhamento, não era só o país, as roupas, a comida, os cheiros, a língua... Até o sol, que me acompanhava desde menina, já não era o mesmo!

Durante a noite, peguei-me várias vezes buscando reconhecer as estrelas, buscava pelo Cruzeiro do Sul que, desde menina, brincávamos de procurar e apontar e, logo em seguida, alguém dizia "não aponta a estrela porque vai nascer uma verruga no seu dedo!" Mas não conseguia reconhecer minhas estrelas...estranho mesmo foi não reconhecer o movimento do sol. Na verdade, eu tinha a mania de olhar o céu e minha sombra para calcular as horas. Tinha orgulho deste conhecimento milenar, assim como minha mãe me explicava para fechar as janelas se começasse a ventar, porque era sinal de chuva, ou mesmo olhar para o céu para ver onde estavam as nuvens mais escuras e saber se a chuva viria em nossa direção ou ao contrário. Por alguns minutos, olhando para o céu de Jaffa, perdi a minha noção de pertença...foi estranho e fantástico ao mesmo tempo...

Sentir saudades da minha sombra ao meio-dia ou da certeza de ver o Cruzeiro do Sul durante a noite são coisas que eu jamais imaginei ser possível. Olhar a paisagem e não reconhecer as plantas, frutas e cor da terra. O mesmo acontece com minha capacidade de prever a temperatura, ou seja, estou acertando tanto quanto a previsão do tempo, que quase sempre fura. O dia começa ensolarado e morno, e, ao meio-dia, a temperatura cai, às 3 da tarde está gelado e, de repente, às 8 da noite, volta a ficar quente. Dá para acreditar? Pois então tenta pôr uma roupa que acompanhe estas oscilações!! E quando explico que venho de uma região do país que só tem 3 dias de frio, ninguém aqui é capaz de acreditar, mas entendem muito bem o conceito de 6 meses sem chuva!

Adaptar meu corpo ao inverno abaixo da linha do Equador é outra tortura, às 4:30 h da tarde está de noite! Daí às 7 e meia eu já estou querendo dormir. Meu corpo parece ter um relógio que funciona com a luz solar, e, sem ela, ele para de funcionar exatamente três horas após o pôr do sol.

Os estranhamentos são diários e fascinantes. Fazer compras num supermercado com todas as mercadorias em árabe é um desafio!! Pedir uma porção de carne moída é quase uma maratona de sinais e expressões corporais. Mas mesmo assim me dou mal. Outro dia comprei a carne em menos de 7 minutos de mímica e estava muito feliz. Mas qual não foi minha surpresa quando a carne demorou mais que o normal para cozinhar e estava com um gosto muito forte, acho que pedi para o cara do açougue moer carne de camelo ou de carneiro!! Deve ter sido o primeiro carneiro (ou camelo) moído da história da Palestina!!!

Mas esta linguagem corporal é fantástica, se eles estão pedindo para você esperar para falar algo, juntam os dedos com se estivessem imitando um cacho de uvas, mas com as pontas dos dedos para cima! E o sinal de não... esse foi demais!. Trabalho com uma tradutora, e, várias vezes, estava tentando ler os sinais corporais da/do cliente, até que ela/ele termine de falar, aí eu estava preparada para escutar “sim”...blá! blá! blá!...e me vinha um “Não” blá! blá! blá!. Daí comecei a questionar minha habilidade (também milenar...risos!) de ler os sinais corporais. Mas, após algumas sessões, descobri, quando atendia uma menina, que nunca falava e só movia a cabeça. Ela suspendia as sobrancelhas, como quando tentamos apontar para algo a frente, e, com isso, subia um pouco sua cabeça. Tudo isto acompanhado por um estalo da língua. Como o movimento da cabeça parecia ser para cima, eu estava crente que significava "sim". Mas aí descobri, após perguntar, porque isso ninguém explica, que este movimento sutil com estalo da lígua é “LÁ” ou seja "NÃO" em árabe!!

Com as crianças aprendo mais rápido, até árabe, qualquer coisa que digo eles perguntam “Shu?”, que pode significar “o quê?” ou mesmo o nosso “Hãm?” Adooro! E quando estão falando a vírgula, ou seja, o nosso “né” é “iani”!

Pelo andar da carruagem, dá para perceber que o meu curso básico de árabe vai ficar no básico mesmo. Nesse meio tempo, talvez eu possa aprimorar meus conhecimentos sobre previsão do tempo e sobre astrologia.

Saudades ....


* Psicóloga, doutoranda em Psicologia pela Unesp-Assis, Professora universitária da cadeira de Psicologia Social, pesquisadora no campo da saúde, saúde mental, gênero e processos de exclusão social, atualmente é psicóloga de uma Organização humanitária Internacional e está na Palestina.



Imagem retirada da Internet: Entardecer em Jaffa